O cara é marrento, pedante, anti-pobre, anti-esquerda e antipático! Mas... sabe fazer um artigo como poucos! Fala o que vem na cabeça e não poupa ninguém. A seguir, trechos de sua crônica a respeito do desastre na boate Kiss, em Santa Maria, no mês de janeiro. É longo, porém, vale ser lido até o fim
Caríssimos
O holocausto de Santa Maria, ao contrário do que apregoam os babacas da
subjetividade, não foi a vitória do Imprevisto sobre a Previsibilidade, nem a
derrota da Precaução pelo Infortúnio. Foi, sim, a sobreposição da Idiotice
sobre o Bom Senso e o triunfo da Ganância sobre a Burocracia.
Primeiro, a Idiotice se fez carne
e habitou entre nós. Uma das tarefas mais simples de ser realizada é disseminar
a Idiotice. Se vocês, caros putzeiros,
olharem ao redor verão exemplos disso em cada esquina, em cada discurso de
político, em cada propaganda de cosmético. Já assistiram um desfile de moda?
São mulheres anoréxicas caminhando feito saracuras sequeladas de AVC, vestindo
roupas desenhadas por bichas loucas que não seriam usadas nem por outras bichas
mais loucas. Já viram o tal carnaval baiano? São milhares de retardados
perseguindo, em ruas apinhadas de seus pares, caminhões carregados de
pagodeiros ou seja lá quem forem, distribuindo milhares de decibéis, todos com
o único objetivo de ficar bêbados o mais cedo possível e depois da ressaca
dizerem que foi o carnaval mais arretado do milênio. Igual a espetáculo de
rock: mais milhares de idiotas movidos a canabis
e outras cositas, pulando feito
jumentos com buscapés nos rabos, ao som de uma cacofonia infernal produzida por
seis ou sete dementes com o uso de quatro acordes, que eles têm o desplante de
chamar de música. Todo esse conjunto de estupidezes tem um único objetivo:
convencer as pessoas que o que é moda é o melhor para elas, e que ’’estar por
dentro’’ é a suprema felicidade, enquanto eles, os promotores da estupidez,
forram a guaiaca com a grana dos felizes consumidores.
E aí chegamos nas baladas.A
balada contemporânea não é apresentada em ambiente de câmara, mas numa
edificação chamada boate ou casa noturna, construída segundo os mais modernos
conceitos de insalubridade. Normalmente as paredes são pintadas de negro, dando
o clima dark, apreciado por onze
entre cada dez frequentadores descerebrados. Embora a lei proíba o uso de
cigarros e assemelhados no seu interior, ambos são consumidos, na proporção de
dez assemelhados para cada cigarro. Caramelos contendo anfetaminas, ecstasy e outros estupefacientes são
oferecidos à clientela. Para evitar as reclamações da vizinhança pelo ruído
produzido, as paredes são forradas de espuma de borracha sintética recobertas
de papelão, tudo altamente inflamável, como se recomenda a um bom inferninho. Luz,
há pouca. Apenas canhões de laser e alguns spots coloridos, alternando-se com
flashes como os de fotografia, que disparam continuamente, de modo a ninguém
perceber pela visão o que se passa a um metro do próprio nariz. Às vezes, para
delírio de todos, o contínuo espocar dos flashes dispara um gatilho neurológico
provocando uma convulsão epiléptica num dos baladeiros. Um outro artefato
chamado Sputnik é responsável por uma imitação de fogo de artifício, produzindo
faíscas altamente recomendáveis num ambiente inflamável. O tal Sputnik é uma
espécie de morteiro que dispara acionado por uma faísca elétrica uma mistura de
pólvora com areia refratária, atingindo a temperatura de até 3.000 graus
centígrados. Levem em consideração que a platina funde a 1.750 graus e o
carbono a 3.485, e verão a potência destrutiva do artefato usado por
brincadeirinha.
O encarregado do barulho é um
profissional altamente valorizado, conhecido pelas iniciais DJ. Nenhum dos
frequentadores sabe o significado da sigla, mas todos sabem a função do DJ –
produzir decibéis em quantidades amazônicas, de modo a saturar a audição dos
prezados frequentadores e impedir qualquer tentativa de comunicação através da
palavra. No mister de fazer barulho, conjuntos pseudomusicais chamados bandas
apresentam-se quando o DJ vai esvaziar o joelho ou descolar um baseado nas
coxias. Como sói acontecer, tais bandas escondem sua absoluta falta de talento
entoando a milhão músicas que ofenderiam a inteligência de uma marmota com
tumor cerebral e apresentando efeitos luminosos e pirotécnicos que desviam a
atenção de sua infeliz parafernália cacofônica.
A segurança dos inferninhos é
feita por uns caras enormes, vestidos de preto, alguns usando óculos de sol às
três da matina. São ex-policiais normalmente expulsos das corporações, ex-presidiários
ou lutadores de qualquer coisa. Sua função é a segurança, quer dizer, é segurar
os consumidores que pretendem escafeder-se sem pagar a conta (que aqui chamam
de comanda). Por isso, as casas noturnas têm uma só saída, que é também a
entrada, quando todas as legislações municipais obrigam a existência de saídas
de emergência. Algumas chegam a ter uma sala para onde os fujões são levados e
obrigados a pagar a conta na base da porrada ou coisa pior.
Proprietários de casa noturnas
são uns caras da pior espécie. Como os banqueiros (de banco ou de bicho), seu
negócio é ganhar dinheiro fácil e rápido, o que significa investir pouco e
aplicar na bolsa (na bolsa dos outros, é claro). Investir pouco quer dizer
pagar barato por materiais de terceira categoria e burlar ou comprar a
fiscalização. Por isso, o revestimento da Kiss era de papelão e espuma de
poliuretano, muitíssimo mais barato, por exemplo, do que o isolamento
termoacústico não inflamável baseado em nanotecnologia. E revisar
periodicamente os extintores de incêndio, nem pensar. Assim, a Ganância
triunfou sobre a Burocracia. A espuma de poliuretano, quando queimada, libera
uma mistura letal de cianetos, ácido clorídrico e monóxido de carbono. Nem os
executores de Auschwitz fariam melhor.
A mesma ganância impulsiona os
donos dessas arapucas a admitirem a entrada de quantas pessoas couberem no
recinto. No caso da Kiss, a boate tinha uma área de 615 m2. E, segundo as
estimativas havia no seu interior entre 1.500 e 2.000 pessoas. Façam a conta,
por baixo: 615:1500 = 0,41, ou seja, cada pessoa dispunha de 0,41m2 para
“divertir-se”. Quer dizer um quadrado de 64 cm de lado!!! Se fossem 2.000 pessoas, o
quadrado baixaria para 55 cm
de lado. Longe de mim criminalizar as vítimas, mas, pelas barbas do Profeta, o
que leva alguém a frequentar um lugar onde dispõe de menos de meio metro
quadrado, no escuro, sem poder falar, ter a audição lesionada por decibéis
incontáveis, sem saída de emergência, respirando ar viciado e pagando 15 reais
pela vagabunda e quente cerveja nacional?
A consumação da tragédia deu-se
por mais um ato de idiotice sem precedentes: acender um sinalizador num
ambiente fechado. O resultado final foi o que se viu.
Arnaldo Jabor
Texto mandado por Humberto via e-mail.